O mercado financeiro adotou a inteligência artificial como se fosse uma promessa inevitável.
Em menos de dois anos, o que antes era conversa de fundo técnico virou narrativa pública, slogan de comitê e “case” de inovação em estruturas que mal organizaram seus dados.
Mas a verdade é que usar IA virou fácil — pensar com ela, não.
1. Curva de adoção de IA no mercado financeiro
O discurso sobre inteligência artificial se espalhou rápido demais. Em menos de dois anos, o que era um tema técnico se tornou pauta de marketing, reunião de comitê e promessa de inovação em praticamente todas as áreas do mercado financeiro.
Mas quando olhamos os números com calma, o hype perde força.
Segundo estudo da Linedata com a Global Fund Media:
36% das empresas de asset management usam IA de forma ativa hoje
33% estão apenas testando
32% sequer começaram
Mais que isso: só 14% das empresas com uso ativo têm múltiplos casos em produção.
Ou seja — a maior parte do mercado está, na melhor das hipóteses, tentando entender o que fazer.
E essa hesitação não é falta de vontade. É falta de base.
Os desafios mais citados no estudo:
Qualidade e manutenção dos dados (19%)
Falta de clareza sobre custos e viabilidade do business case (15%)
Escassez de expertise interna em IA (13%)
Essas três travas têm algo em comum: nenhuma se resolve com prompt pronto, contratação apressada ou ferramenta de prateleira. Todas exigem estrutura.
Quanto mais avançado o uso, mais difícil escalar — porque o diferencial começa a depender de contexto proprietário, leitura de operação e capacidade de interpretação.
Em vez de um ciclo linear, o que temos é um funil: várias empresas testam IA, algumas avançam, poucas conseguem de fato transformar esse uso em inteligência aplicada ao negócio.
2. Por que a maioria está usando errado?
Todo mundo quer dizer que está usando IA.
Mas pouca gente quer fazer o trabalho real de transformar dados internos em vantagem competitiva.
O resultado é o que estamos vendo hoje: uma corrida estética.
Automação rasa, conteúdo automatizado, dashboards que impressionam — mas não decidem nada.
Em muitos escritórios e gestoras, a IA está sendo aplicada como se fosse uma assistente de tarefas operacionais.
E não uma alavanca de interpretação estratégica.
Segundo o relatório “What’s Next: A Closer Look at Artificial Intelligence in Asset Management”, também da Linedata:
As aplicações mais comuns hoje são:
Síntese de documentos (28%)
Extração de dados (28%)
Q&A em bases de conhecimento (17%)
→ Todas voltadas para produtividade interna.
→ Nenhuma voltada para diferenciação de mercado, relacionamento ou decisão.
Só uma minoria aplica IA para simulações de portfólio, mapeamento de comportamento ou personalização inteligente do atendimento.
Mas isso não é sobre tecnologia — é sobre cultura.
A maioria das empresas trata IA como extensão da operação, quando ela deveria ser uma estrutura de análise, decisão e posicionamento.
E isso tem consequência direta: quanto mais genérico o dado, mais genérica a resposta.
E quanto mais genérica a resposta, mais parecida sua comunicação, seu produto e sua narrativa ficam com o resto do mercado.
O que parece IA, na prática, é só:
Aceleração de materiais que já não performam
Respostas automáticas sem critério
Scripts com aparência de inteligência, mas sem profundidade real
Isso é especialmente grave no mercado financeiro, onde diferenciação e confiança são construídas em como se fala, com quem, e em que momento.
Não é sobre gerar conteúdo.
É sobre gerar inteligência a partir do que ninguém mais tem: a operação da sua própria empresa.
3. 10 aplicações reais de IA no mercado financeiro
O discurso de que “todo mundo está usando IA” esconde um fato importante: poucos estão usando bem.
Entre os fundos, escritórios e plataformas que estão na frente dessa curva, o padrão é claro:
Uso de dados internos
Foco em decisões críticas (não tarefas repetitivas)
Integração com arquitetura real de operação
criei uma matriz com 10 exemplos concretos, todos extraídos a partir de relatórios disponíveis na fnmk:
Eixo 1: Tipo de aplicação = intenção estratégica
Empresas não usam IA da mesma forma — nem pelo mesmo motivo.
Relacionamento e interface (Morgan Stanley, Goldman Sachs, Liquidnet)
Foco em escalar atendimento sem perder sofisticação.
→ O diferencial está em liberar tempo humano para decisões críticas, não automatizar tudo.Predição macro ou micro (Bridgewater, Citadel, Man Group, Renaissance)
A IA modela cenários impossíveis de simular manualmente.
→ Funciona como sistema de pensamento, não de execução.Auditoria e governança (GPIF, BlackRock)
Aplicação defensiva, usada para mitigar riscos.
→ IA também é sobre controle, não só crescimento.IA como plataforma (Goldman, BlackRock)
Inteligência no core do produto, não em um departamento à parte.
Se a IA no seu escritório não está conectada ao centro da decisão, ela é periférica.
E tudo que é periférico tende a ser cortado em tempos de ajuste.
Eixo 2: Nível de autonomia = confiança no modelo
Quanto mais crítica a aplicação, maior o nível de confiança exigido.
Na Citadel ou Renaissance, a IA faz parte da lógica de decisão de trading.
Na Liquidnet ou Marquee, a IA suporta decisões humanas.
Empresas que não dominam seus dados não confiam na IA.
Sem confiança, o uso da tecnologia se limita a tarefas cosméticas.
Eixo 3: Infraestrutura + integração = barreira real
O diferencial não é só a tecnologia, mas a capacidade de integrá-la a sistemas, pessoas e processos.
Essas estruturas têm engenheiros de dados, especialistas de risco e cientistas integrados ao negócio.
É por isso que “comprar uma IA pronta” quase nunca funciona.
→ Os modelos precisam ser treinados com a realidade interna da operação.
Eixo 4: Ecossistemas, não soluções pontuais
BlackRock com Aladdin, Goldman com Marquee e Bridgewater com os Hint Machines mostram um padrão novo:
IA como ecossistema de decisão.
Essas estruturas não compram soluções. Elas constroem seus próprios sistemas, com integração direta à cultura e filosofia de gestão.
4. Como aplicar IA de forma estratégica
Abaixo, um framework direto para quem trabalha com relacionamento, conteúdo, captação ou decisão.
IA não é sobre fazer mais. É sobre fazer melhor.
E, principalmente, pensar com mais critério, mais contexto e menos ruído.
Caminho 1: IA como apoio à decisão estratégica
Simular comportamento de clientes com base em engajamento anterior
Reordenar pauta comercial por leitura de sinal fraco
Modelar aderência por cluster
Caminho 2: IA como motor de personalização real
Ajustar proposta com base em leitura e timing de resposta
Gerar conteúdo sob demanda com racional de alocação
Sugerir call to action por tipo de interação
Caminho 3: IA como ferramenta de estruturação interna
Ler documentos internos e identificar gargalos de compliance
Agrupar respostas comerciais para otimizar linguagem
Analisar produtividade com base no comportamento de clientes
Perguntas que ativam o raciocínio
Qual dado interno só você tem e ainda não está usando como insumo de decisão?
Onde, no seu funil, você improvisa mais do que estrutura?
Existe algum padrão que você repete há anos sem revisar?
Sua IA está te ajudando a pensar ou só a fazer mais rápido?
Se tivesse que treinar uma IA hoje, o que ela aprenderia?
Se você não tiver respostas claras para pelo menos três dessas perguntas, sua IA ainda é operacional.
E nesse caso, o risco é escalar o que nunca foi revisado.
O diferencial não é a IA — é o racional
O futuro da IA no mercado financeiro não será definido por quem “usou primeiro”, mas por quem soube estruturar melhor.
Esse texto não traz uma solução.
Ele organiza o pensamento de quem quer entrar nesse jogo com densidade.
A partir daqui, quem quiser usar IA como um diferencial legítimo em investimentos, conteúdo, comunicação ou decisão vai precisar de uma coisa mais valiosa do que qualquer tecnologia: racional próprio.