O ano era 2002. A hiperinflação já havia ficado para trás, o Brasil ainda dava os primeiros passos rumo a um mercado financeiro moderno, estável e competitivo. A estrutura bancária era rígida, verticalizada e — para os padrões atuais — quase analógica. A ideia de um cliente investir pelo celular, comparar fundos de diferentes instituições ou montar uma carteira personalizada com produtos de casas independentes… parecia coisa de ficção.
E pra quem acha exagero, vale lembrar: naquela época, se o cliente quisesse confirmar uma operação à distância, era comum ter que enviar um fax. Isso mesmo. Um papel impresso, assinado e transmitido via aparelho barulhento, com cheiro de papel térmico, só para validar uma aplicação ou resgate. E não era caso isolado, não — era o protocolo padrão.
A experiência do investidor era limitada, e o profissional que o atendia também. No banco X, o gerente vendia apenas produtos do banco X. Plataforma aberta? Isso nem existia no vocabulário. O modelo era fechado, com pouca concorrência, poucos produtos e ainda menos incentivo à qualificação técnica.
Foi nesse cenário que o Conselho Monetário Nacional publicou a Resolução nº 3.158/02, determinando que os profissionais do mercado financeiro passassem a comprovar seu conhecimento técnico por meio de certificações. E foi o começo de uma revolução silenciosa — que, duas décadas depois, está prestes a dar seu salto mais ousado.
O nascimento das certificações: ANBIMA e PLANEJAR
A então ANBID (hoje ANBIMA) lançou, naquele mesmo ano, sua primeira prova de certificação — que depois se tornaria a famosa CPA-20 e, em seguida, a CPA-10. Não muito depois, em 2003, o IBCPF (hoje PLANEJAR), aplicava no Brasil a primeira prova do CFP., levando o nível da conversa sobre finanças pessoais, planejamento e investimentos.
Para dimensionar o salto que o mercado deu ao longo das últimas décadas, basta olhar os números — e, mais do que isso, a velocidade da transformação.
- Em 2002, o Brasil contava com 4.540 fundos de investimento registrados e um patrimônio líquido total de R$ 355 bilhões, segundo dados da ANBIMA.
- Em 2025, o número de fundos ultrapassa 35 mil registros, com um PL que já passa dos R$ 9,5 trilhões.
Olhar apenas o crescimento do mercado de fundos de investimentos já nos responde muitas coisas em relação à necessidade de de mudanças, entretanto, se a gente descer um nível nessa análise, podemos destacar o gráfico abaixo:

Fonte: Anbima – elaborado por Tiago Feitosa
A curva de crescimento na criação de novos fundos, mostrada no gráfico acima, revela algo ainda mais relevante: não foi apenas um aumento contínuo — foi uma explosão recente. Especialmente a partir de 2018, o ritmo de criação de novos fundos disparou, refletindo um mercado mais dinâmico, competitivo e diversificado.
É claro que poderíamos citar outros dados que corroboram com essa tese:
- O crescimento de investidores pessoa física na Bolsa de Valores
- A expansão da plataforma do Tesouro Direto
- O aumento do número de distribuidores de valores mobiliários
- Até os bancos tradicionais que, outrora estavam “deitados em berços esplêndidos”, passaram a oferecer plataforma aberta para seus clientes.
Essa transformação, por si só, reforça a urgência de revisão nas certificações. Se o ecossistema mudou com tamanha velocidade, o modelo de qualificação profissional precisa acompanhar — ou ficamos correndo atrás do prejuízo.
De gerente de produtos para consultor de soluções
A mudança não foi só tecnológica, foi de mentalidade.
Antes, o gerente era basicamente um distribuidor de meia dúzia de produtos. Hoje, ele precisa ser um verdadeiro curador de soluções.
Antes:
- Atendimento por telefone fixo, horário bancário.
- Produtos: poupança, CDB, previdência fechada.
- O cliente aceitava o que era oferecido.
Hoje:
- Atendimento híbrido, app, WhatsApp, videochamada.
- Produtos: fundos, ETFs, multimercados, cripto, seguros, previdência aberta, COEs, internacionais.
- O cliente compara tudo antes mesmo de entrar na agência — se é que entra.
A virada para as plataformas abertas foi um dos grandes marcos dessa transição. Hoje, mesmo o profissional de um grande banco pode — e deve — oferecer produtos de outras instituições. Isso obriga o profissional a entender não só o que está vendendo, mas por que aquele produto faz sentido para aquele cliente. O papel técnico virou essencial.
Evolução das certificações
Esse novo cenário exigiu atualização das provas e das certificações.
As CPAs foram sendo ajustadas. A CEA veio pra quem queria dar um passo além. O CFP®, com seu reconhecimento internacional, consolidou o planejamento financeiro como uma especialidade com profundidade e responsabilidade.
Hoje, os números da ANBIMA impressionam:
- CPA-10: 528.672 profissionais certificados
- CPA-20: 279.117
- CEA: 47.613
Mas… será que esses certificados, criados num tempo em que o cliente precisava mandar um fax, ainda dão conta da complexidade do investidor de 2025?
2026: um novo capítulo começa
A resposta é clara — e o mercado já se moveu.
Na PLANEJAR:
A partir de 2026, o exame do CFP® passa de 6 para 8 módulos. Entram novos temas como:
- Psicologia do planejamento financeiro
- Finanças criptográficas
- Habilidades humanas e aplicação prática
São mudanças sutis no formato, mas relevantes no conteúdo. Afinal, se o planejador financeiro lida com sonhos, medos e decisões de longo prazo, ele precisa ir além dos números.
Na ANBIMA:
As mudanças são mais estruturais. CPA-10, CPA-20 e CEA sairão de cena. Em seu lugar:
- CPA: Certificação Profissional ANBIMA (pré-requisito para as demais)
- CPro-R: Certificação Profissional de Relacionamento
- CPro-I: Certificação Profissional de Investimentos
O profissional poderá escolher uma trilha: seguir pela vertente de relacionamento (CPro-R) ou pela especialização técnica (CPro-I). E a atualização será anual, via aplicativo da ANBIMA — fim daquele modelo de “passou e esqueceu”.
Além disso, temas como crédito, proteção e sucessão passam a compor a base obrigatória de conhecimento. O profissional do futuro precisa entender a jornada completa do cliente, não apenas empurrar fundos.
Mais do que prova: é cultura de aprendizagem
Como educador e como alguém que vive essa transformação por dentro, acredito que o maior desafio não está na mudança das siglas, e sim no comportamento.
Hoje, muitos profissionais vêem a prova como obstáculo. Reclamam, com certa razão, é verdade, que “aquilo ali não tem nada a ver com o que eu vivo no dia a dia”. E, verdade seja dita, quantas vezes um gerente bancário no segmento de varejo de um banco precisou explicar para um cliente o que é um SWAP?
Mas e se as provas refletirem melhor a realidade do balcão? Se forem compostas por casos reais, decisões práticas, dilemas éticos, dúvidas comuns dos clientes? A certificação pode virar uma aliada — não um fardo.
Da mesma forma, o profissional precisa entender que estudar não é um evento pontual. É um processo contínuo. E a nova geração de certificações parece apontar exatamente pra isso.
Ao que tudo indica e, pelos pequenos spoilers que foram demonstrados pela ANBIMA, o novo formato de provas deve estar mais alinhado com o dia a dia do profissional do que com a tecnicidade pouco relevante para o dia a dia.
Em abril deste ano, a ANBIMA convidou alguns profissionais para realizarem um teste piloto dos novos exames. É verdade que este teste não tinha pretensão de medir o conhecimento dos candidatos que fizeram o exame, mas de mostrar o “novo modelo de questões”.
Não se sabe ainda como a ANBIMA trará ao mercado as novas provas, mas, se o teste piloto puder nos indicar algo, posso concluir que as provas virão com situações do dia a dia, com case real e necessidade de conhecimento, não decoreba.
A mudança que estamos assistindo no mercado dia após dia, finalmente, parece chegar em quem faz o mercado acontecer: o profissional.
Sai de cena as CPAs da ANBIMA, e dão espaço a novas certificações. Esperamos que saia de cena o profissional que vê na certificação um problema e dê espaço ao profissional que se colocará em constante movimento e aprendizado.
A história das certificações no Brasil é, na verdade, a história da evolução do mercado. Um mercado que saiu do fax, passou pelo e-mail, chegou ao app — e agora caminha pra inteligência artificial, open finance e um investidor cada vez mais consciente.
O profissional que quiser continuar relevante vai precisar se adaptar. E mais do que “ter” uma certificação, vai precisar viver o que ela representa: atualização, técnica, ética e, acima de tudo, compromisso com o investidor do futuro.