A Divisão de Finanças Corporativas da SEC está publicando uma série de entregas dedicadas às exceções jurisdicionais para o setor cripto. Apesar de a Administração Trump parecer mais disposta a apoiar esse universo em crescimento, a literatura publicada pela SEC sustenta que certas chamadas “stablecoins” não são valores mobiliários. Para Caroline A. Crenshaw, comissária do regulador norte-americano, o realmente chamativo dessa declaração não é tanto sua conclusão final, mas sim a análise na qual o pessoal se apoia para chegar a ela. “Os erros legais e factuais da declaração apresentam uma visão distorcida do mercado de stablecoins vinculadas ao dólar norte-americano, que subestima drasticamente seus riscos”, aponta.
Segundo ela, grande parte da análise do pessoal se baseia nas ações dos emissores que supostamente estabilizam o preço, garantem a possibilidade de resgate e, em geral, reduzem o risco. Os especialistas da SEC reconhecem, embora brevemente, que algumas stablecoins em dólares só estão disponíveis para compradores de varejo por meio de um intermediário e não diretamente do emissor. Mas, na realidade, reconhecem que o habitual — e não a exceção — é que essas moedas estejam disponíveis para o público varejista unicamente por meio de intermediários que as vendem no mercado secundário, como as plataformas de negociação de criptomoedas.
Concretamente, mais de 90% das stablecoins em circulação são distribuídas dessa forma. “Os detentores dessas moedas só podem resgatá-las por meio do intermediário. Se o intermediário não puder ou não quiser resgatar a stablecoin, o titular não tem nenhum recurso contratual contra o emissor. O papel dos intermediários — particularmente das plataformas de negociação não registradas — como distribuidores principais de stablecoins em dólares gera uma série de riscos significativos adicionais que o pessoal não considera”, afirma A. Crenshaw.
Consequências para o investidor
Na opinião desta comissária, as pessoas não estão analisando a fundo as consequências dessa estrutura de mercado nem como ela afeta o risco, e sustenta que o fato de os intermediários lidarem com a maior parte da distribuição e do resgate varejista de stablecoins em dólares reduz consideravelmente o valor das ações do emissor nas quais o pessoal se baseia como “características de redução de risco”.
“Uma dessas características-chave é a reserva de ativos do emissor, que o pessoal descreve como projetada para cumprir plenamente suas obrigações de resgate, ou seja, com ativos suficientes para pagar um resgate de 1 dólar por cada moeda em circulação. Mas, como já mencionado, em geral os emissores não têm obrigações de resgate com os titulares varejistas das moedas. Esses titulares não têm nenhum interesse nem direito de acesso à reserva do emissor. Se resgatarem moedas por meio de um intermediário, o pagamento provém do intermediário, não da reserva do emissor. O intermediário não é obrigado a resgatar uma moeda por 1 dólar, e pagará ao titular o preço de mercado. Portanto, os titulares de varejo não têm, como afirma o pessoal, um direito ao resgate em dólares em proporção um para um”, argumenta.
Por outro lado, considera impreciso que o pessoal sugira que só porque a reserva de um emissor esteja avaliada, em algum momento, acima do valor nominal de suas moedas em circulação, o emissor tem reservas suficientes para satisfazer solicitações ilimitadas de resgate (seja de intermediários ou titulares) no futuro.
“O pessoal também exagera o valor como garantia das reservas do emissor ao afirmar que alguns emissores publicam relatórios, chamados provas de reservas, que demonstram que uma stablecoin está respaldada por reservas suficientes. Tal como advertiram a SEC e o PCAOB, os relatórios de prova de reservas não demonstram tal coisa”, acrescenta.
A conclusão da SEC
Para essa comissária, esses erros legais e factuais na declaração do pessoal prejudicam gravemente os titulares de stablecoins em dólares e, dado o papel central dessas moedas nos mercados cripto, também os investidores cripto em geral. Além disso, destaca que alimentam uma narrativa perigosa da indústria sobre a suposta estabilidade e segurança desses produtos.
“Isso fica especialmente evidente com a escolha do pessoal de repetir um termo de marketing extremamente enganoso: dólar digital, para descrever as stablecoins na moeda norte-americana. Que não haja dúvidas: não há nada equivalente entre o dólar norte-americano e os criptoativos emitidos privadamente, não regulados, opacos (inclusive claramente para o próprio pessoal), não colateralizados, não assegurados e carregados de risco em cada etapa de sua cadeia de distribuição multinível. São um negócio arriscado”, argumenta.
O que acontece em outras partes do mundo?
Curiosamente, na América Latina o interesse pelas stablecoins cresceu nos últimos anos como ferramenta contra a inflação — como em países como Argentina e Venezuela —, como alternativa para facilitar transações internacionais (com o México como principal exemplo), e para promover a inclusão financeira.
Em termos de regulação, a situação varia muito conforme a região. No entanto, chama a atenção o caso do Brasil, onde se experimentou um aumento significativo no uso de stablecoins, representando cerca de 90% das transações de criptoativos no país. Segundo especialistas, esse crescimento levou as autoridades a considerar regulações específicas para enfrentar desafios relacionados à supervisão e fiscalização.
Do outro lado do Atlântico, o BCE continua com seus esforços para garantir que o euro digital cumpra os objetivos do Eurosistema e esteja alinhado com os desenvolvimentos legislativos dentro da União Europeia. Nesse sentido, no ano passado foram dados dois passos relevantes. Por um lado, o BCE publicou seu primeiro relatório de progresso sobre a fase de preparação do euro digital. Nele, destacou-se o desenho de altos padrões de privacidade para que os pagamentos digitais, tanto online quanto offline, se assemelhem ao máximo às transações em dinheiro. Além disso, iniciou-se o trabalho em uma metodologia para calibrar os limites de posse do euro digital.
Por outro lado, em dezembro de 2024, foi publicado o segundo relatório de progresso, que abordou os avanços realizados entre maio e outubro de 2024. Durante esse período, o Grupo de Desenvolvimento do Regulamento completou uma revisão do rascunho inicial do regulamento, abordando aproximadamente 2.500 comentários. Além disso, foram iniciados sete novos grupos de trabalho focados em áreas críticas como padrões mínimos de experiência do usuário, gestão de riscos e especificações de implementação.