Às vezes, as grandes revoluções são tão graduais que passam quase despercebidas. Assim, após quinze anos de debates e de estar no centro da disputa política, o sistema de pensões chileno, que serviu de modelo para toda a região, entra em uma fase de mudanças que incluem a criação de um sistema misto com um pilar solidário, um pilar estatal e a contribuição individual. As AFPs, ou seja, os fundos privados, permanecem no coração do sistema.
Uma reforma pronta para se tornar lei
O debate em torno do sistema de pensões no Chile – que se estendeu por mais de uma década – finalmente chegou a um desfecho no final de janeiro, dando uma trégua a 20 anos de incerteza estrutural. O Congresso aprovou o projeto de lei impulsionado pelo governo na última sexta-feira, com 110 votos a favor e 38 contra. Apesar das críticas do setor de AFPs, a indústria financeira local destaca que essa iniciativa – que inclui um aumento gradual na contribuição e a implementação de um sistema misto – fortalece a posição das AFPs no sistema e pode trazer fluxos para os ativos locais.
As intenções iniciais de reformular as AFPs atuais para que atuassem apenas como gestoras de investimentos ficaram pelo caminho, e as administradoras privadas continuarão no centro do sistema, embora com a concorrência de um novo ator estatal no setor. Além disso, foi aprovado um aumento na contribuição e no seguro social, um aumento na Pensão Garantida Universal (PGU), licitações de carteiras de afiliados, a criação de fundos geracionais e um seguro para lacunas previdenciárias.
Assim, a reforma está pronta para ser promulgada como lei, criando um sistema que combina um pilar solidário, um pilar estatal e a contribuição individual administrada pelas gestoras previdenciárias.
Visões da indústria financeira
Analisando a questão sob outras perspectivas da indústria financeira local, especialistas enfatizam os pontos fortes e fracos da iniciativa do governo liderado por Gabriel Boric.
“Além de alguns elementos que provocarão distorções no mercado de trabalho e maior pressão nas contas públicas, a reforma reforça o papel das AFPs, melhora as pensões atuais e futuras, ao mesmo tempo em que incorpora um componente de repartição para compensar as mulheres”, destacou o Bci Estudos em um relatório após a aprovação. No longo prazo, acrescentaram, isso contribuirá para aprofundar o mercado de capitais e “levará a um aumento em torno de 0,5% no crescimento tendencial da economia”.
Nathan Pincheira, economista-chefe da Fynsa, lembra a necessidade de reformar o sistema de pensões. “O aumento na expectativa de vida, as lacunas previdenciárias, a evolução dos salários, as diferenças nos mercados de trabalho feminino e masculino, os saques, etc., tornavam urgente a adoção de medidas que pudessem – pelo menos – corrigir esses aspectos, tanto para os aposentados atuais quanto para os futuros”, escreveu em um comentário antes da aprovação legislativa.
Um dos fatores que impulsionou a bolsa chilena aos patamares que atingiu recentemente – acumulando uma alta de 20% nos últimos 12 meses – foi a conclusão da saga previdenciária local. No último mês, marcado por negociações no âmbito político e protagonizado pelos ministros Jeannette Jara, do Trabalho, e Mario Marcel, da Fazenda, o índice acionário S&P IPSA subiu 7,5%, ultrapassando os 7.200 pontos.
A questão dos fluxos
“A indústria de pensões no Chile tem desempenhado um papel crucial no desenvolvimento dos mercados de capitais locais, fornecendo investimentos de longo prazo em diferentes classes de ativos”, afirmou o banco de investimentos JPMorgan em um relatório publicado dias antes da aprovação da reforma. Em dezembro de 2024, o sistema administrava 186,4 bilhões de dólares em poupança.
“De acordo com nossas estimativas, sob o sistema atual, com uma contribuição de 10%, os fundos de pensões recebem aproximadamente 710 milhões de dólares mensais, enquanto cerca de 390 milhões de dólares saem do sistema todos os meses para pagamentos de pensões”, indicaram no documento, assinado por Diego Celedón, Emy Shayo e Adrián Huerta. Isso deixa o fluxo líquido mensal em torno de 320 milhões de dólares.
Olhando para o futuro, a expectativa é que esses números aumentem. “Embora o aumento final na taxa de contribuição ainda não esteja definido, estimamos que um aumento de 1% geraria fluxos líquidos adicionais de mais de 70 milhões de dólares por mês, totalizando mais de 850 milhões de dólares anuais“, explicaram. Para aumentos de 4% e 6%, acrescentaram, os fluxos mensais cresceriam para 284 milhões e 426 milhões de dólares, respectivamente.
No caso da renda variável, em particular, a expectativa da Credicorp Capital é que os primeiros três anos da reforma tragam uma menor força compradora de ações locais, “dado o caráter gradual das contribuições às contas individuais”, que chegariam a 1% no quarto ano. “Nesse momento, esse fluxo líquido adicional poderia atingir entre 60 e 70 milhões de dólares (cerca de 100 milhões de dólares acumulados)”, destacaram.
No longo prazo – e assumindo que as AFPs mantenham seu posicionamento em renda variável local em torno de 7% –, o fluxo líquido chegaria a 300 milhões de dólares no nono ano, quando a contribuição incremental para contas individuais atingisse 4,5%. “Esse valor equivale a 35% da média de 10 anos do investimento líquido em renda variável local observado antes do estallido social e dos saques dos fundos de pensões”, enfatizaram.
As críticas das AFPs
“Valorizamos que esta nova lei busque aumentar a poupança nas contas de capitalização individual dos afiliados, preservando atributos altamente valorizados pela população, como a propriedade e a possibilidade de herança dos fundos de pensões, além da liberdade de escolher quem administra suas economias”, declarou a Associação de Administradoras de Fundos de Pensões (AAFP).
No entanto, a entidade identificou diversas medidas na reforma que, em sua opinião, “enfraquecerão as pensões dos trabalhadores de hoje e do futuro”. Entre elas, destacaram a incorporação de um 1% de repartição para financiar benefícios definidos; a destinação de 1,5% do salário para um empréstimo obrigatório; a entrada do Estado no setor de poupança previdenciária – o que poderia criar um cenário de concorrência desleal, dado o envolvimento do Instituto de Previdência Social (IPS); um mecanismo de licitação baseado em comissões “sem considerar a vontade expressa dos afiliados nem estabelecer incentivos eficazes para buscar maior rentabilidade”; e níveis de exigência mais baixos para os administradores.
“Reiteramos que a solidariedade, embora desejável e necessária, deveria ser financiada por impostos gerais ou por meio de um endividamento estatal transparente nos mercados financeiros”, afirmou a entidade, que representa as AFPs Capital, Cuprum, Habitat, Modelo, Planvital e Provida. Para a AAFP, “a solidariedade não deve ser financiada com os salários dos trabalhadores nem por meio do sistema de repartição, pois isso acaba prejudicando as pensões daqueles que, com muito esforço, contribuem e trabalham formalmente”.
O impacto político
“É importante destacar que, segundo diversos analistas políticos, a eventual aprovação da reforma previdenciária no Congresso pode ter consequências políticas”, afirmou a Credicorp Capital em um relatório publicado pouco antes da aprovação da reforma.
Com a próxima eleição presidencial no horizonte, “a questão é quem capitalizará melhor esse cenário, considerando que uma pesquisa recente revelou que mais de 60% dos entrevistados valorizam positivamente um acordo sobre a reforma das pensões durante o governo do Presidente Boric”, escreveram Samuel Carrasco e Rodrigo Godoy no documento.
A pesquisa Cadem confirma essa visão: 65% dos entrevistados concordam com a aprovação da reforma, e 52% acreditam que ela representa todos os setores de maneira equilibrada.
Quanto aos aspectos específicos da nova lei, a Cadem detalhou que 83% dos entrevistados concordam com o aumento da PGU, 66% apoiam a possibilidade de serem transferidos para uma AFP que cobre uma comissão menor, mantendo a liberdade de trocar quando quiserem, e 65% estão de acordo com o aumento das contribuições a cargo do empregador. Além disso, 62% se manifestaram favoráveis a que 0,5% das contribuições sejam destinadas a um fundo de repartição para compensar as mulheres.
Outro ponto relevante nas discussões é o impacto no mercado de capitais chileno. Considerando o aumento projetado das contribuições, a expectativa das casas de investimento é que isso impulsione fluxos para os ativos locais, que sofreram com as retiradas de fundos previdenciários aprovadas entre 2020 e 2021.